O Estatuto do Avaí proíbe uma segunda reeleição de Battistotti

Esclarecimento inicial: este texto retrata o posicionamento do seu autor e não corresponde, necessariamente, à opinião da Comissão Eleitoral ou dos responsáveis pelas chapas concorrentes às eleições do Avaí, que ainda não se manifestaram sobre o tema.

Durante o último ano, Francisco José Battistotti manifestou em algumas oportunidades o desinteresse em permanecer na presidência do Avaí, mas, às vésperas da eleição, mudou de ideia: no dia 14/11, depois de angariar o apoio de alguns sócios, Battistotti protocolou junto à Comissão Eleitoral seu pedido de candidatura.

Como se sabe, Battistotti, outrora Vice-Presidente do Clube, assumiu a cadeira de Presidente mediante sucessão, em abril de 2016, após a renúncia de Nilton Macedo Machado. Em 2017, foi reeleito Presidente para o quadriênio 2018-2021. Agora, na eleição de 2021, ao que tudo indica, buscará uma segunda reeleição.

No entanto, sua pretensão eleitoral esbarra em previsão expressa do Estatuto do Avaí Futebol Clube, vigente desde janeiro de 2016.

O regramento avaiano, em seu art. 58, prevê o seguinte:

Art. 58. A Presidência do Clube compõe-se do Presidente e do Vice-Presidente, eleitos em Assembleia Geral, na forma prevista neste Estatuto, para o mandato de 4 (quatro) anos, permitida uma única reeleição.

Não há qualquer dúvida de que uma segunda reeleição afrontaria a norma estatutária. Portanto, a candidatura de Battistotti ao próximo pleito é manifestamente inadmissível.

Poder-se-ia argumentar que o primeiro período de Battistotti à frente da Presidência, entre 2016 e 2017, decorreu de sucessão ao titular, em razão da renúncia do então mandatário, e que a eleição para o quadriênio 2018-2021 foi a primeira em que ele concorreu efetivamente à cadeira de Presidente, raciocínio que, se prevalente, admitiria uma nova candidatura. 

Essa tese, no entanto, jamais poderia prosperar.

Embora o Estatuto do Avaí não contenha norma específica para tratar desta particular problemática, consagra, em seu art. 85, a aplicabilidade subsidiária da legislação eleitoral federal para seus assuntos eleitorais. 

Vejamos, então, como a matéria é encarada no âmbito eleitoral federal.

A Constituição da República, na clara redação do art. 14, § 5º, prevê que “O Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido, ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subsequente”

Nos Tribunais Superiores, como não poderia deixar de ser, prevalece, há décadas, a compreensão de que o vice que sucede o titular pode se eleger no pleito subsequente, configurando-se, nessa hipótese, verdadeira reeleição, mas não poderá ser reeleito mais uma vez, pois isso daria margem a um intolerável terceiro mandato consecutivo.

A título ilustrativo, trazemos à tona algumas decisões do Tribunal Superior Eleitoral:

Eleitoral. Consulta. Elegibilidade. Chefe do Poder Executivo. Art. 14, §§ 5º e 7º, da Constituição Federal. I. Impossibilidade de o vice-prefeito que assumiu, definitivamente, a vaga do titular, elegendo-se no pleito seguinte, vir a se candidatar no pleito imediatamente posterior (Precedentes/TSE). […] (TSE – CTA nº 882, Rel. Min. Carlos Velloso, Resolução nº 21421 de 26/06/2003).

ELEIÇÕES 2012. REGISTRO DE CANDIDATURA. VICE-PREFEITO REELEITO QUE, POR QUALQUER MOTIVO, ASSUME A CHEFIA DO PODER EXECUTIVO NOS SEIS MESES ANTERIORES AO PLEITO NO QUAL CONCORRE À PREFEITURA. REELEIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. ART. 14, § 5º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PRECEDENTE. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. Assumindo o Vice-Prefeito a chefia do Poder Executivo municipal por força de afastamento do titular do cargo, por qualquer motivo e ainda que provisório, não poderá candidatar-se à reeleição no período subsequente. 2. Agravo regimental desprovido. (TSE – Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral n. 0000129-07.2012.6.18.0056, Rel. Min. Laurita Vaz, j. em 18/12/2012).

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e desta Corte firmou–se no sentido de que “[o] vice que assume o mandato por sucessão ou substituição do titular dentro dos seis meses anteriores ao pleito pode se candidatar ao cargo titular, mas, se for eleito, não poderá ser candidato à reeleição no período seguinte” (REspe 222–32/SC, Rel. Min. Henrique Neves da Silva, publicado em sessão de 16/11/2016). (TSE – Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral n. 0600222-82.2020.6.15.0068, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. em 01/07/2021).

Se esse raciocínio se aplica à interpretação da legislação federal, por certo que deve permear a exegese do art. 58 do Estatuto do Avaí, que contém previsão análoga.

Dito isso, é certo que Francisco Battistotti, após exercer período como titular da presidência do Avaí em 2016 e 2017, foi reeleito para o quadriênio 2018-2021 e, consequentemente, não poderá concorrer a mais uma reeleição, nos termos do art. 58 do Estatuto do Clube (à luz da interpretação dada à matéria pelas Cortes Superiores).

Semanas atrás, um eminente jurista, na condição de advogado contratado de Battistotti, subscreveu nota na qual sustentou a viabilidade de nova candidatura do seu cliente. Para tanto, argumentou que a primeira eleição de Battistotti, ainda como Vice-Presidente, ocorreu em 2013, sob a vigência do Estatuto anterior, o que lhe daria uma espécie de “imunidade” à regra que passou a valer a partir de 2016.

Com o devido respeito, essa tese também não convence.

Na legislação eleitoral federal, aplicável subsidiariamente ao âmbito do Avaí por força estatutária, as regras que modificam eleições entram em vigor na data de sua publicação e ganham aplicação prática para os pleitos realizados depois de um ano a partir dessa data (art. 16 da Constituição Federal).

Nesse contexto, o art. 58 do Estatuto, que impõe o limite de uma reeleição ao mandatário do Clube, já poderia constituir óbice a uma segunda reeleição desde o pleito de 2017. 

Ao contrário do que afirma a defesa do Presidente, a condição de mandatário já reeleito – e, portanto, inábil a uma segunda reeleição – é aferível no presente. Ora, se o indivíduo se trata de um mandatário reeleito, fato constatável no presente, o Estatuto o impede de se reeleger por uma segunda vez, pouco importando quando se deu seu primeiro mandato e se a aludida regra já vigia àquele remoto tempo. Em outras palavras, o impedimento de uma nova candidatura não configura “retroatividade” da regra em prejuízo do candidato, mas sua simples aplicação em tempo presente.

A prevalecer a tese de “direito adquirido às regras vigentes em 2013”, suscitada pelo procurador de Battistotti, poderíamos até mesmo cogitar seu “direito” de se reeleger indefinidamente ou mesmo de inobservar as demais exigências estatutárias para a aptidão dos candidatos, inclusive em contraste com seus eventuais oponentes, o que não faria sentido.

Ainda que assim não fosse, isto é, mesmo que se desse credibilidade à tese da defesa de Battistotti de que a vedação só seria invocável caso vigente desde o primeiro momento em que o atual mandatário passou a ser reelegível à presidência – o que se faz apenas a título argumentativo -, teríamos de concluir que ela continuaria aplicável ao caso em comento. Afinal, a vedação em questão já vigia ao tempo em que Battistotti sucedeu Nilton Macedo Machado (abril de 2016) e passou a titularizar a cadeira de Presidente, exercendo seu primeiro mandato efetivo. Sob a sua vigência, portanto, Battistotti exerceu um mandato de Presidente (2016-2017) e foi reeleito para um segundo mandato (2018-2021), encontrando-se, logicamente, inelegível a um terceiro consecutivo. 

Existe, a bem da verdade, precedente isolado, proferido pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, no qual se reconheceu a inaplicabilidade de vedação análoga, trazida por norma estatutária superveniente, a caso em que o mandato de Presidente da associação estava em curso. Vejamos:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA NEGATIVA. ELEIÇÃO DA ASSOCIAÇÃO CLUBE DOZE DE AGOSTO PARA O QUADRIÊNIO 2015/2019. SENTENÇA DECLARANDO A NULIDADE DO CERTAME E A INELEGIBILIDADE DO ENTÃO PRESIDENTE. RECURSO DA ASSOCIAÇÃO RÉ. 1. INSURGÊNCIA QUANTO À POSSIBILIDADE DE REELEIÇÃO DO CORRÉU QUE OCUPAVA A PRESIDÊNCIA. TESE ACOLHIDA. 1.1. REQUERIDO QUE FOI ELEITO PARA OS BIÊNIOS 2011/2013 E RECONDUZIDO PARA O BIÊNIO 2013/2015. ESTATUTO VIGENTE, NAQUELA OPORTUNIDADE, QUE NÃO INFORMAVA O NÚMERO DE REELEIÇÕES POSSÍVEIS. RELAÇÃO JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO QUE ADMITE A LICITUDE DE TUDO O QUE NÃO ESTIVER EXPRESSAMENTE VEDADO, RESSALVADAS NORMAS COGENTES. 1.2. POSTERIOR MODIFICAÇÃO DO ESTATUTO, EM NOVEMBRO DE 2014, QUE LIMITOU A REELEIÇÃO PARA UMA ÚNICA VEZ E AUMENTOU O TEMPO DO MANDATO PARA QUATRO ANOS. VIGÊNCIA DA NOVA NORMA QUE, A DESPEITO DE REVOGAR A ANTERIOR, DEVE OBEDIÊNCIA AO ATO JURÍDICO PERFEITO E AO DIREITO ADQUIRIDO. 1.3. PRÉVIA RECONDUÇÃO (2011/2013 PARA 2013/2015) QUE NÃO ESGOTA A LEI POSTERIOR. SITUAÇÃO QUE IMPLICARIA EM RETROAÇÃO DA LEI NOVA A DIREITO JÁ CONSOLIDADO. 1.4. REELEIÇÃO POSSÍVEL. SENTENÇA MODIFICADA NO PONTO.   “Consoante disposição contida no art. 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em se tratando de direito material, a Lei nova não pode retroagir para abarcar situações consolidadas por lei anterior, preservando-se a segurança jurídica por intermédio do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada” (TJSC, Agravo de Instrumento n. 2013.047297-1, de Capinzal, rel. Joel Figueira Júnior, Sexta Câmara de Direito Civil, j. 22-4-2014).   2. SOLUÇÃO ALCANÇADA QUE IMPORTA EM SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. ÔNUS SUCUMBENCIAL READEQUADO. 3. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (TJSC-  Apelação Cível n. 0306047-77.2015.8.24.0023, da Capital, Rel. Des. Raulino Jacó Brüning, Primeira Câmara de Direito Civil, j. em 19/112020).

(Antes de mais nada, cumpre destacar que, ao contrário do que a ementa parece sugerir, a distinção entre a relação jurídica de direito privado e aquela de direito público não foi realizada pelo colegiado para justificar a diferença de tratamento no que concerne à tese de “direito adquirido” e “ato jurídico perfeito”, mas apenas para subsidiar a técnica de interpretação de determinado termo contido no estatuto da associação tratada naquele feito, o que pode ser constatado com a leitura da íntegra da decisão).

A ratio decidendi de referido julgado, de todo modo, não pode ser importada em benefício de Battistotti.

A uma porque, diferentemente da hipótese retratada no aresto, Battistotti já ascendera à presidência e, ademais, se reelegera sob a égide do Estatuto atualizado. Nesse contexto, caso cogitemos a obtenção de um suposto direito adquirido à reeleição – o que mais uma vez se faz apenas por apego ao debate -, é certo que esse direito se basearia na redação do Estatuto já atualizado, pois vigente no momento em que Battistotti alcançou a titularidade do cargo e, só então, passou a, pela primeira vez, ser reelegível como presidente.

A duas porque, ao contrário da norma estatutária avaiana, o estatuto da associação tratada naquele precedente não continha dispositivo determinando a aplicação subsidiária da legislação eleitoral federal às suas eleições. No Avaí, diferentemente, ignorar o tratamento dado pela legislação federal à matéria é impossível, por força do art. 85 do Estatuto.

A três porque, caso reputássemos idênticos os casos e pretendêssemos dar a solução apontada pelo TJSC, afigurar-se-ia necessário ignorar o amplo e consolidado histórico jurisprudencial das Cortes Superiores, que jamais reconheceram ao eleito o “direito adquirido” às regras de reeleição vigentes no momento de sua primeira eleição.

Ao enfrentar caso semelhante, em que a inclusão do limite às reeleições foi inserido no estatuto da associação durante o exercício do mandato de seu Presidente, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu: 

Associação. Declaratória c.c. pedido de imissão na posse de cargo eletivo. Eleição com dois candidatos em que um deles busca reeleição pela terceira vez. Estatuto social que permite apenas uma reeleição no mesmo cargo. Probabilidade do direito e perigo de dano demonstrados. Recurso provido para reconhecer a nulidade da candidatura do agravado, determinando-se a imissão do agravante e de sua chapa na posse dos cargos da Diretoria Executiva. Agravos internos prejudicados. (TJSP –  Agravo de Instrumento n. 2021881-38.2019.8.26.0000, Rel. Des. Maia da Cunha, 4ª Câmara de Direito Privado, j. em 28/03/2019).

Do corpo do julgado, aliás, extrai-se o seguinte trecho, cuja lógica serve como uma luva à resolução da presente questão:

[…]. De acordo com os documentos de fls. 120/123,126/130 e 131/136, o Sr. Aristides venceu as eleições de 2009, 2012 e 2015 para exercer o cargo de Diretor Presidente dos respectivos quadriênios, o que,por óbvio, inviabiliza a sua candidatura para o quadriênio de 2019-2023, diante do teor do art. 30 do Estatuto Social, sendo, também, irrelevante a discussão sobre a validade da reunião da Comissão Eleitoral de 07.01.2019.

Nem se argumente que a alteração do Estatuto Social ocorreu em 2013 e que, por isso, as primeiras eleições após a alteração foram em 2015, sendo as eleições de 2019 a primeira reeleição do ora agravante. Isso porque o Estatuto Social não tratou expressamente sobre a não contabilização do tempo de ocupação de cargos da Diretoria antes da entrada em vigor da nova redação para fins de reeleição, de modo que a interpretação a ser adotada é a de que o teor do estatuto é aplicado imediatamente. Assim, não há razão para desconsiderar que o agravante ocupa o cargo desde 2009. […].

Nos próximos dias, a viabilidade da chapa de Battistotti será objeto de análise pela Comissão Eleitoral instituída para a condução do pleito de 2021. Considerando que ao órgão compete zelar pela regularidade da disputa e pela averiguação das condições de elegibilidade dos candidatos, deverá indeferir a candidatura de Battistotti, inclusive de ofício, independentemente da eventual impugnação de interessados, em razão do inquestionável óbice estatutário acima explicado.

Não podemos tolerar que as eleições do Clube sejam marcadas por uma irregularidade tão flagrante, tampouco correr o risco de, mais à frente, termos o reconhecimento da nulidade do pleito.

Publicado por Eduardo Roberge Goedert

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Fundador do portal Troféu Avaí. Conselheiro do Avaí Futebol Clube, pelo segundo mandato.

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